terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Retalhos do passado.

" (...) gosto de imaginar que me comprimo o quanto posso contra a muralha espessa do tempo."
Virginia Woolf

Davi sempre me pareceu um mistério prestes a se revelar. Um enigma, uma surpresa. Sempre foi assim. Nas brincadeiras da infância e nas poesias que escrevia, sim, desde menino possuía ares de poeta... recitava as mais lindas poesias.
Logo no florescer de sua infância, ele já descobrira o que queria; seria um médico. “Cuidador de vidas, receptor de Sonhos!” como ele mesmo afirmava.
Éramos grandes companheiros! Nós três, sempre; eu, Heitor e Davi... os dois eram melhores amigos e lembro-me bem de ficar emburrada quando não me deixavam brincar com eles na rua;
- Amélia, não venha conosco hoje! Vamos brincar com os meninos da rua, você não vai poder ir! – dizia Heitor, sempre confiante e sempre protetor.
- Oras! Porque eu tenho que ficar só! Quero ir também!
- Ele tem razão Amélia. Os meninos maiores não gostam que meninas estejam por perto. – Davi sempre falava comigo em um tom tão suave, que acalmava a minha alma.
E então os dois saiam sozinhos a jogar futebol pelas ruas da nossa vizinhança. E eu invejosa pela liberdade que só os meninos tinham, ficava no portão de casa. No entanto, logo Davi voltava a minha casa, sempre com uma desculpa diferente;
- Você já voltou? A brincadeira não estava boa?
- Hoje não. Eu tenho que te mostrar um segredo. Eu volto logo, espere um instante.
Quando ele retornou tinha em mais uma caixa embrulhada em um pedaço de pano gasto. Parecia que ele a havia acabado de desenterrar o embrulho, estava com as mãos sujas de barro. Desembrulhei com cuidado a caixinha; era uma caixinha de música. Ao abri-la deparei-me com um belo casal a dançar uma valsa antiga. Era a mais linda caixinha de música que eu tinha visto. Ao lado do casal havia um pedaço de papel dobrado, sem hesitar peguei o papel para ver o que tinha.
- Não! Não leia agora! Só abra o papel quando você estiver no seu quarto! Este é um grande segredo!
E os meus olhos brilharam de felicidade! Corri para casa, entrei casa adentro correndo, estava com pressa! Ao entrar no quarto, tranquei com cuidado a porta e coloquei a caixinha sobre a cama, ao abri-la, lá estava o lindo casal a valsar, e ao som daquela valsa, agarrei o pequeno pedação de papel, o desembrulhei com cuidado, as letras da infância eram quase impossíveis de ler, no entanto eu sabia muito bem lê-las.
Era um poema. Um lindo poema, chamava-se “Dona”:

“Em pequenas linhas eu te digo.
Roubaste meus sonhos pequenos!
Pegastes sem consideração,
E agora e para sempre,
Serás a Dona do meu coração!”
Davi.

Era esse o segredo de Davi. Para sempre, eu seria sua Dona.
No entanto, o nosso futuro não seria como nos poemas de infância.
Aos quinze anos, o pai havia falecido. Foi um triste acontecimento. Logo após ele e a mãe viajaram para Portugal, lá ela se casou de novo. Mas Davi nunca tirava de sua cabeça as lembranças de seu pai, ele nunca pôde aceitar que sua mãe estivesse casada novamente.
Nossa despedida foi dolorosa e triste. Depois de sua partida fiquei doente durante uma semana. Mamãe reclamava alto, dizendo que tudo aquilo que eu sentia era apenas birra de menina mimada.
Depois de uns meses, ouvi uma conversa entre papai e mamãe; eles discutiam sobre o meu futuro;
- Acho que não é hora de decidir com quem Amélia deve se casar! Ela só tem 11 anos!
- Você diz isso. Eu não. Já está na hora dessa menina trilhar um futuro, e eu sei bem com quem esse futuro será brilhante! Ela vai se casar com Heitor Amaral! Já fiz o favor de despachar aquele moleque e sua mãe para bem longe! Quem precisa de dinheiro não vai desperdiçar uma oferta de um novo emprego em Portugal! Ora! Fiz um favor aquele miserável! E eu nunca ia permitir que um molequezinho sem família encostasse a mão em Amélia! Vai contra os meus princípios!
- Eu não acredito! Então foi você quem emprestou dinheiro a Dolores! Você é demoníaca Margarida! Demoníaca! Como pode? O menino nada tem a ver com Amélia! São só crianças!
- Alfredo meu amor, você não enxerga como eu, Amélia gosta desse garoto. Eu sinto. Ela precisa de um futuro! E nós também! Esqueceu que estamos quase falidos?  – E com essas palavras, mamãe pode enfim convencê-lo. Estávamos realmente falidos.
- Meu amor... confie em mim. Futuro mais brilhante para nossa flor não existirá. – Afirmou minha mãe confiante em suas palavras.
E durante outra semana fiquei doente. Doente por fora, morta por dentro. Minha mãe me assassinara.
Papai vendo toda aquela situação, escreveu a Dolores, mãe de Davi, contando sobre minha doença e pedindo com toda sua alma que pudéssemos manter contato, nem que seja por carta. E assim, durante felizes meses, pudemos nos falar. Mesmo que fosse escondido de mamãe.
E o tempo pode enfim passar bem colorido diante de mim.
Até que não recebi mais suas noticias. Mandava cartas que em vão, vinham sem resposta.
Heitor, sempre um fiel amigo, nunca me abandonou. Ao meu lado, pude confessar as minhas tristezas de adolescente, meus sonhos que Davi havia jogado no mar de Portugal.
E a amizade de anos pode florescer, Heitor era como um anjo protetor, suas asas me encobriam de qualquer mal, e a partir daí, nasceu um amor que não compreendo. Um respeito, e cumplicidade que dividíamos com o decorrer dos anos; e o tempo voltou a correr colorido diante de mim.
Até que em um lindo jantar, Heitor pediu-me em casamento, foi uma linda festa, mamãe estava radiante! A todo instante eu a via com os olhos marejados de lágrimas, lágrimas sinceras de que eu seria imensamente feliz com Heitor.
E então eu nunca mais receberia uma carta de Davi, não receberia, até a manhã do baile.




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